Carta aberta a quem resiste: afeto e dignidade na clínica racializada
- Psicóloga | Laiany Maiara

- 13 de abr. de 2024
- 2 min de leitura
Atualizado: 28 de ago.

Inicialmente, experimentei os afetos do receio.
No momento em que nos conhecemos, eu refletia sobre como poderia criar um espaço genuíno, onde você pudesse se sentir acolhido(a), compreendido(a) e, sobretudo, representado(a).
Preparar um setting terapêutico é habilidade essencial do ofício, mas também é desafio quando nossas identidades foram moldadas em resposta a um racismo que atravessa cada detalhe da vida. Criar um espaço seguro, para nós, não é um luxo: é um ato político.
Ganhar sua confiança foi um processo lento e valioso. Com o tempo, percebi que você também carregava vivências duras, marcas que reconheço porque também as vivi. Vi em seu olhar a dor escondida quando as palavras falhavam, o riso que disfarçava cicatrizes, as lágrimas que denunciavam feridas abertas.
Aos poucos, você deixou de lado a resistência, e juntos enfrentamos o peso de um mundo que insiste em cobrar excelência de quem sempre teve portas fechadas. Aprendi que sua organização, disciplina e padrão elevado não são apenas escolhas pessoais, mas estratégias de sobrevivência em espaços elitizados que não foram feitos para nós. O simples gesto de se permitir ser autêntico(a) na terapia se tornou, então, um ato de coragem e liberdade.
Desde o início, sabia que você precisava de alguém que visse não só seus esforços, mas também a estrutura que insiste em invisibilizá-los. Quero que saiba: eu vejo você.
Foi doloroso testemunhar as vezes em que sua dor foi ignorada, em casa, no trabalho ou em relações afetivas. A ausência de reconhecimento feriu tanto quanto qualquer trauma. Outros podem ter te nomeado como frio, bravo, distante. Eu, no entanto, reconheci sua sensibilidade, sua generosidade e a criatividade com que expressa afeto em um mundo que tantas vezes tenta negá-lo.
Na terapia, meu objetivo foi mostrar que a confiança pode ser reconstruída, e que vínculos saudáveis são possíveis — mesmo para aqueles que sempre precisaram provar duas vezes mais para existir.
Quero que você saiba: você merece todas as formas de amor, cuidado e reconhecimento. Flores, cartas, abraços, mãos dadas, declarações públicas. Você merece afetos íntimos e afetos coletivos. Você merece dignidade em cada gesto.
Juntos, enfrentamos desafios da vida adulta — a conclusão da faculdade, rupturas afetivas, pressões familiares e profissionais. E em cada passo, vi sua capacidade de resistir, de sentir e de se reconstruir.
Sou grata por compartilhar esses momentos, e reafirmo: sua vida, sua dor e sua alegria importam.
Com respeito, afeto e compromisso,
sua psicóloga negra.


